quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Normal é o bicho-papão

Por: Claudia Werneck


O que existe entre o feio e o bonito? O gordo e o magro? O melhor e o pior aluno? Entre o menino que corre como um foguete e aquele que anda em uma cadeira de rodas? Errou se você respondeu que entre tais extremos está o normal, o padrão, a média... Em um mundo de pessoas que se caracterizam por diferenças, o normal não existe.

Somos mais iguais ou mais diferentes? Diferentes, é lógico! Assim como as artes, a humanidade encontra infinitas formas de se manifestar. Iguais são os direitos, mas é impossível trabalhar por justiça social sem reconhecer o quanto somos diferentes e, portanto, necessitamos de recursos absolutamente diversos para alcançar os mesmos objetivos, sendo que esses recursos variam a cada minuto de nossas vidas. Um aluno deve acompanhar a turma? Jamais, pois, se acreditamos que somos absolutamente diferentes, os modelos inexistem e tudo que construímos até hoje cai por terra, como um frágil castelinho de cartas. Em seguida a este despertar para a convicção de que é a diversidade humana que nos legitima como espécie, o que sentimos? Medo, ansiedade, angústia, desamparo. Tudo isso e muito mais, porque a liberdade é assim; assusta.

Acabou-se o tempo de insistirmos em arrumar gentes em caixinhas, hierarquizar crianças, adolescentes e jovens do melhor para o pior, como se isso fosse possível ou digno. A prática da segregação, a qual nos acostumamos sem sentir, é incompatível com o conceito de inclusão que propõe justamente um olhar sobre... aqueles que nasceram ou que ficaram de algum modo deficientes? Não. A inclusão propõe um novo olhar sobre o conjunto da humanidade, instiga-nos, assim, a assumir uma nova ética, a da diversidade. Nela, a competição dará lugar ao desafio; o modelo, ao não-modelo; o conhecido, ao desconhecido; o esperado, ao surpreendente. Quem se arrisca?

Quando um professor aponta o melhor desenho ou trabalho da turma, mesmo que seja um singelo coelhinho da Páscoa de papel celofane, ele automaticamente aponta para o grupo a existência do pior coelhinho. Isso é percebido e confirmado se os coelhinhos mais lindos, mais bem coloridos e recortados vão para um mural enfeitar a sala. Sutilmente, a turma de crianças, ainda tão pequenas, começa a se exercitar na prática da discriminação e da competição que tanto caracterizam nossa vida escolar, propiciando a quase todos nós, por gerações e gerações, a dor de se sentir feio, burro, pobre, lento. Crescemos acreditando ter o direito de qualificar gente, sim. A escola ensina. E quando nos sentimos "acima da média", com a auto-estima em dia, assumimos uma posição muito generosa, a de respeitar ou a de tolerar a diferença de quem está no final do ranking, o que já pressupõe uma atitude autoritária. Lamento informar que não temos o direito de respeitar ou de tolerar a diferença de ninguém. Se todos nós, nascidos e integrantes, portanto, do conjunto da humanidade, somos intrinsecamente diferentes, em nome de que modelo de gente vamos avaliar a diversidade do outro?

Não existem os diferentes, os especiais, os excepcionais. Cada criança tem a sua diferença, sua especialidade, sua excepcionalidade. Diversidade humana deveria ser nossa palavra de ordem, estampada em letras garrafais em cartazes espalhados pelo mundo no Dia da Criança, no Dia dos Professores, no Dia das Mães, dos Pais etc. Aí reside o paradigma da liberdade. Buscar o normal é como acreditar em mula-sem-cabeça, em bicho-papão, em curumim, em sereia encantada.


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Claudia Werneck é jornalista e escritora, fundadora e presidente da ONG Escola de Gente – Comunicação em Inclusão, e consultora do Banco Mundial para a área de inclusão.

Fonte: Verso Brasil Editora - editora@versobrasil.com.br
Data de Publicação: 22/09/2004

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